Capoeira e intolerância religiosa

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(ou reminiscências de um racismo velado)

A Capoeira no contexto da sociedade globalizada vem se tornando um importante meio de sustentabilidade econômica de um grande contingente de pessoas, o que torna cada vez mais comum encontrarmos indivíduos das mais diversas origens sociais mantendo-se através de iniciativas próprias ou de trabalhos realizados em órgãos públicos ou privados na área cultural, social, educativa, de turismo e ou desportiva, dentro e fora do Brasil. Este crescimento no campo de trabalho d@s capoeiristas têm representado um ganho valioso dentro da luta histórica pela superação dos preconceitos em relação a esta pratica cultural de origem africana no Brasil e no mundo. Por outro lado, este mesmo fenômeno de expansão traz consigo em muitos casos a herança da negação, da omissão e do desrespeito.

Uma das grandes questões atuais diz respeito à construção da ideia de uma Capoeira livre de seus elementos místicos e religiosos, num projeto político velado que visa à exclusão dos elementos representativos da religiosidade de matriz africana. O que se resumiria objetivamente numa Capoeira livre de sua africanidade.

Com a liberação da Capoeira e outras praticas culturais negras durante o Estado Novo na década de 30 dos milenovecentos, diferentes rumos foram tomados na luta pela preservação da Capoeira, a categorização da mesma dentro da lógica esportiva foi o germe da ideia de uma Capoeira livre de sua religiosidade. O levante da Capoeira Angola com personalidades como Mestre Pastinha, M. Noronha, M. Totonho de Maré, M. Aberrê, entre tantos outros, foi com certeza o que preservou muitos destes elementos que ainda hoje se deseja o aniquilamento.

Em pleno século XXI, com todos os avanços tecnológicos que temos alcançado é importante perceber a velocidade com que o mundo caminha e produz mudanças nas práticas culturais populares através da lógica de mercado. Podemos observar que este movimento tem crescido consideravelmente no que diz respeito à Capoeira com o ingresso de aulas principalmente em instituições assistenciais de orientação católica e protestante, o que nos aponta para a necessidade de refletir sobre o valor da Capoeira no mercado e de como @ Capoeirista tem se posicionado em relação a certas restrições e regras de conduta para o desenvolvimento das relações de ensino e aprendizagem.

Um dos fundamentos das praticas culturais negras é a não separação entre a experiência de relacionamento com o divino, das demais experiências cotidianas, numa relação harmoniosa entre o sagrado e o profano, ou seja, a comunhão entre o que é divino e o que é festivo/lúdico ou mesmo guerreiro. A sugestão do apagamento deste traço constitutivo da Capoeira produz o rompimento de um pilar fundamental para sua sustentação enquanto cultura negra.

Não se trata aqui de defender que @s capoeiristas façam opção por esta ou aquela religião, mas de analisar a importância da preservação dos elementos que a constituem como cultura e tomar posição diante desta questão.

Podemos encontrar no ritual da roda de Capoeira inúmeras expressões desta presença viva seja nos cantos de louvação, na postura dos jogadores ao pé do berimbau, na concentração dos cantadores ou cantadoras antes de entoar suas ladainhas, na relação com os mais velhos da comunidade, na relação de respeito com os instrumentos que conduzem o ritual, na reverencia aos ancestrais, nos transes que ocasionalmente ocorrem durante os jogos e muito diretamente nas letras das inúmeras cantigas que dizem desta relação.

Podemos inclusive, encontrar elementos de distintos matizes religiosos dentro do infinito acervo musical tradicional da capoeira.

Da liturgia do Candomblé pode ser encontrada pérolas como:

“Ê Ogum IÊ!

Ogun e tatá que malembê…

Ê Ogun Iê!

Tatá que malembê!

Ogun iê!

Tatá que malembe!”

Do catolicismo podemos encontrar cantigas como:

“Valha-me Deus, sinhô São Bento

Buraco véi tem cobra dentro…

Valha-me Deus, sinhô São Bento”…

Recentemente estivemos na Escola de Capoeira Angola Resistência , estudando a Revolta dos Malês, importantíssimo levante da população negra escravizada na salvador de 1835 e conversando com alguns camaradas na ocasião me recordei de uma contribuição muçulmana (fragmento de uma oração árabe) no corrido:

“Ala lai,

Ô lai lalailá!

Ala laí

Ô lai lalailá!

Ô lai…

Lalailá!!!”.

Mestre João Pequeno deixou sua contribuição evangélica com a ladainha:

“Quando eu aqui cheguei

A todos eu vim louvar

Vim louvar a Deus primeiro

E os moradores deste lugar

Agora eu to cantando

Cantando dando louvor

To louvando a Jesus Cristo

Porque nos abençoou

To louvando e tô rogando

Ao pai que nos criou

Abançoe essa cidade

Com todos seus moradores

E na roda de capoeira

Abençoe os jogadores

Camaradinha”

E por ai vamos longe…O que demonstra como a Capoeira dialogou ao longo de sua história com diferentes formas de viver o contato com Deus, Alá, os Orixas, Inkices, Voduns, Santos, Guias e demais forças de vida espiritual. A proposição de uma Capoeira livre deste traço é um crime contra sua própria história. Mas o maior crime é a negação de que em suas origens esta sempre esteve associada ao universo das religiões de matriz africana e num passado não muito longe, quando da perseguição policial às praticas religiosas dos povos negros no Brasil, inúmeras são as histórias em que a Capoeira esteve à frente da defesa dos espaços de culto e de seus zeladores e zeladoras. Combatendo na base da pernada, da navalhada e das cacetadas a honra de sua gente quando da chegada dos homens da lei que inúmeras vezes prenderam, torturaram e mataram aqueles que cultuavam outras formas de relacionamento com o divino. Numa relação de solidariedade coletiva muito comum nas lutas de resistência contra a escravidão e o racismo não só no Brasil como noutros cantos do mundo onde se deu a diáspora africana.

A reflexão e ação em prol da manutenção do respeito ao celeiro cultural de onde nasceu nossa arte não é um dever, mas uma necessidade à tod@s que amam a Capoeira como fonte de vida e não apenas como fonte de renda.

Preservar, cultuar o respeito e a manutenção desta relação é o que garantirá aos nossos filh@s, net@s, bisnet@s e tataranet@s o contato vivo com o aforismo de Mestre Pastinha que nos diz:

“O bom Capoeirista não é aquele que sabe movimentar o corpo, mas sim aquele que se deixa movimentar pela alma.”

Contra Mestre Léo Lopes

(Escola de Capoeira Angola Resistência – Hortolândia SP Brasil)


Léo Lopes é Contramestre, integrante da Escola de Capoeira Angola Resistência de Campinas e Hortolândia

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